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Os que fracassam ao triunfar

  • Foto do escritor: Sonia Rodrigues
    Sonia Rodrigues
  • 7 de mar. de 2016
  • 3 min de leitura

Sábado, no Largo do Machado, a caminho do Metrô, fiquei dez minutos convencendo uma mulher de classe media, média, a não chamar a polícia para um jovem negro, provável morador de rua, provável drogadicto que estava olhando para as bolsas das mulheres quando elas passavam.

A mulher, bem mais nova do que eu, estava imbuída da defesa de outras mulheres, prevendo que a qualquer momento, ele tomaria o dinheiro de alguma companheira de gênero (ô, galera que entende das coisas, veja se está bem colocada a palavra, por favor). Eu fui acalmando a pessoa até ela desistir de chamar a polícia preventivamente. Aí, eu precisei passar pelo cara que, meio tonto, me disse: senhora, pode me dar um trocado para eu comprar ração para o meu cachorro?

Fiquei com o coração partido, mas não dei dinheiro para ele comprar crack, cola de sapateiro, o que fosse.

Disse, como já vi minha mãe fazer muitas vezes: que Deus te proteja. E ele respondeu: e a senhora também.

O resultado é que saí dali tão injuriada de ver todos os dias gente jovem vagando pelas ruas da minha cidade que, meia hora depois, as labaredas da raiva me tomaram numa discussão em que agi com uma idiota. Por incapacidade de ser cúmplice.

Tenho birra com a palavra “cumplicidade”. Parece coisa de quem só funciona na vaidade ou na simpatia.

Reparo, no entanto, que as pessoas costumam amar e proteger seus cúmplices acima de tudo e de todos. Talvez porque os cúmplices sejam incapazes de rejeitar as evidências de erros. Um pouco com as mães de gambás de propaganda fazem com os filhos. Ignoram o cheiro e o medo dos que têm contato com o cheiro dos seus pimpolhos.

Comecei a assistir House of Cards depois de terminar Downton Abbey ontem. Vou assistir em doses de 20 minutos por vez, quem sabe. Porque além das manchetes sobre o Congresso Nacional, ter que aguentar Francis Underwood binge watching, é demais para mim.

Freud disse, sobre Macbeth, que algumas pessoas têm tudo na mão, mas fracassam porque destroem as próprias chances de triunfar. Por vaidade ou ganancia, talvez?

O Rei Lear, vaidoso, me fascina e me entristece. Macbeth ou Ricardo III, cruéis e gananciosos, não.

Pessoas cruéis não me atraem (tenho amigos que são fascinados por esses tipos), mas considero a lógica dos cruéis mais compreensível do que a lógica dos vaidosos.

Pessoas muito vaidosas precisam ser aprovadas o tempo todo. Qualquer desaprovação é encarada como traição, desprezo ou, pior, combate. E quando são vaidosas e cruéis ao mesmo tempo?

Lembro de algumas pessoas vaidosas e cruéis que deixaram de me olhar porque eu dizia que estavam sendo cruéis.

O que é demonstração de forte tendência ao fracasso, da minha parte. Qual o sentido de dizer para uma pessoa cruel que ela está sendo cruel? Crueldade se denuncia ou se pune. Não dá para fazer DR com gente cruel.

Muitas e muitas vezes em minha vida destruí minhas chances de sucesso em pequenas, médias, grandes atividades pela tentação de dizer (ou escrever) claramente o que penso. Pior, escrever ou dizer coisas para as pessoas erradas.

Podia ser pior, do meu ponto de vista. Eu podia ter destruído minhas chances de estar com pessoas, de ganhar um pouco mais de dinheiro, de ser mais aplaudida por preguiça, vaidade ou por ser sociopata. Não.

Em geral, cometo sincericídio por incapacidade de ler o interlocutor. Esgotei minha capacidade de ser cúmplice, suponho.

Porque alguns de nós (muitos) não estamos preocupados com objetivos que impliquem em abdicar de nossas simpatias. De nossa cumplicidade.

De uma certa forma, é como se estivéssemos desistindo de ser grandes.

 
 
 

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