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Diário da Peste 10

  • Foto do escritor: Sonia Rodrigues
    Sonia Rodrigues
  • 31 de mar. de 2020
  • 2 min de leitura

Existe uma diferença entre autocontrole e assassinato. Por exemplo, eu matei meu tesão por churros. Eu pratico o autocontrole mantendo o consumo de vinho limitado a uma taça, uma taça e meia. Em homenagem à balança e em respeito à minha tendência ao vício.

Penso que para enfrentar a Pestepreciso dosar bem meu impulso de eliminar sentimentos. Porque sou bem treinada em suportar e superar adversidades, mas já não lido tão bem com o controle de sentimentos. A tendência é suportar o insuportável e, finalmente, incendiar as pontes, carbonizando quem estiver nela.

Ontem, meditei cinco vezes para conseguir manter a boca fechada num small talk. Não sei, não quero saber, tenho raiva de quem sabe. Essa é minha relação com o small talk. Reconheço a importância da técnica social de falar amenidades introdutórias. Só me parece um desperdício de tempo, a menos que seja como introdução para coisas mais interessantes. Como dinheiro ou sexo.

Durante a Peste, no entanto, penso que as pessoas deviam se preocupar com o que realmente importa: Medo, Desejo, Sonhos. Defendo gastar o tempo digital com frases profundas, do tipo:

O confinamento com você seria mais divertido; estou triste com isso ou aquilo; tive um pesadelo do qual não me lembro; sonhei essa noite que estávamos no Arp comendo carpacio de melancia e o pior que anteontem sonhei que estávamos no Astor bebendo Blood Mary e comendo besteirinha à milanesa, estou com alguma fixação no Arpoador, ou em calorias; você não acha que o fulano de tal parece com você sabe quem; lembra aquela moça que foi chamada de historiadora apesar de ter 22 anos e ser bacharel em História no máximo; o que você faria se nós não estivéssemos confinados; como é mesmo aquela receita de papo de anjo?

Ou gastar o tempo com trabalhos tirados da gaveta. Com prazos. Cumprindo processos. Respondendo mensagens. Evitando deixar pessoas no vácuo. Retornando ligações.

Não me consolam as desculpas esfarrapadas, mesmo que sejam verdadeiras: ah, a falta de ânimo, ah, o cachorro comeu meu dever de casa, ah, não fiz porque fiquei fumando estirado no sofá, pensando na morte da bezerra... Não quero saber.

Porque a Peste vai passar. Mas a lista dos maus feitos (e da covardia amorosa) permanecerá gravada em pedra. Ou arquivada no servidor, o que é a mesma coisa.

 
 
 

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